O conto da sereia




Simplesmente o melhor e mais detalhado conto sobre sereias que já encontrei pela web.
Retirei do blog Verbalizada.


*************************************

Quem as águas do mar admirava, ainda que com muita atenção, mal conseguia ter ideia do que se preservava em suas profundezas. É que tão ciumento e protetor, o Oceano guardava pra si, em sua imensidão infinita, as sereias, e então o mundo quase pouco ou nada delas podia saber.

As sereias eram mulheres da cintura pra cima, exímias tamanha perfeição, com traços delicados em seus rostos, cabelos tão belos e sedosos quanto fios de seda, de lábios atraentes, olhos claros como a alma dos homens viajantes e narizes simétricos. Seus seios eram vastos e redondos como os das mulheres renascentistas, cobertos pelas conchas mais brilhantes numa tentativa pretensiosa de fingir o pudor. Seus perfumes instigavam, dentro de cada um que o sentia, toda a essência pura da tão nobre felicidade, e suas vozes, que eram sempre flagradas sussurrando tênues canções, eram também a doçura, a paz, a calmaria. No lugar de pernas e pés, uma longa cauda se mostrava cheiíssima de escamas frágeis e delicadas, e em seus pescoços uns poucos e invisíveis pelos existiam para arrepiar-se nas noites frias. Tão incríveis seres possuíam a capacidade de seduzir todos aqueles que pousassem os olhos sobre seu semblante ou que ouvissem, mesmo por poucos segundos, seu canto. Até o Oceano - grande rei do mundo, pai de milhões de vidas marinhas e guardião das caravanas e das expedições humanas -, até ele se rendia à inevitável perda de controle, de identidade e de vontade própria quando uma sereia desatava a própria voz ou penteava os longos cabelos. E definitivamente delas o mundo se tornava, quando à superfície uma ou duas subiam e sobre o Céu lançavam seu enlevo.



Pois todos a elas obedeciam, mesmo sem saberem. Se a água congelante se tornasse, as nuvens do Céu se dissipavam e o Sol aquecia os corpos das sereias. Se uma baleia fizesse menção de abocanhá-las, em poucos segundos se contorcia tamanha vergonha e morria de tanto desgosto. Se a chuva incomodasse, rapidamente parava de cair, e elas voltavam a se preocupar com outras regalias. E quando tinham fome, tão fácil era se saciarem! Pois os homens sempre adoravam aventurar-se nas águas dos mares em barcos que, por mais altos que fossem, nunca eram o suficiente para afastá-los das sereias. Eram tolos, fracos e as poucas histórias que alertavam sobre a existência das sereias e que podia guardá-los já haviam se tornado mitos há tanto tempo que ninguém se preocupava em lembrar. Pois os graciosos monstros sentiam quando na superfície se encontrava um barco e então nadavam até encontrá-lo. Observavam, discretamente, e lentamente se aproximavam. Quase nada se esforçavam; apenas começavam a cantar, nadavam caprichosamente e os olhavam de soslaio vez ou outra, pois isso era o suficiente. Completamente inebriados, os homens desciam do convés e se aproximavam dentro de barcos menores, alguns simplesmente pulavam na água e nadavam apressadamente, salivando de tão ansiosos. Quando se aproximavam, não temiam, mas mais encantados ficavam, pois a verdade é que nunca no mundo existiu ou vai existir algo tão bonito quanto às sereias, e os homens, escravos da beleza, caiam na armadilha num piscar de olhos. Pacientes, elas cantavam um pouco mais e apenas quando eles tentavam beijá-las nos lábios ou tocar-lhes a face, os abraçavam com força e os levavam para o fundo do mar, onde os pobres humanos sentiam os pulmões se enchendo de água e morriam, lenta e vaidosamente. Lá no fundo do oceano, as sereias desabotoavam suas camisas com os dedos esbeltos e provavam da sua carne, saboreando – ainda muito belamente - todos os corações sangrentos. Logo depois limpavam os beições e esperavam por um pouco mais.




A vida das sereias era vazia, mas não era tediosa. Elas tinham muito para fazer. Gostavam de praticar suas habilidades tocando instrumentos, de nadar por todos os lados livremente, de procurar por conchas para tampar os seios ou enfeitar os cabelos com pérolas. Divertiam-se criando arranjos com os corais, se misturando aos peixes, tomando banhos de sol na superfície, mas seu divertimento era seco, era frio. Nunca no mundo se ouvira a gargalhada de uma sereia, nunca ninguém pôde vê-las chorar.

Mas uma manhã de outono chegou, e o Céu se vestia num lindo tom de azul, e as águas do mar estavam serenas. Havia doze dias que nenhum homem aparecera e as sereias se separaram para procurar por cadáveres no mar. Não estavam famintas, imagine; as sereias só sentiam fome quando sem carne ficavam por meses. Mas não tinham nada melhor para fazer e queriam se entreter. Apenas Sayuri, uma das sereias mais jovens, decidiu não seguir as outras, pois um pouco de harpa almejava praticar, e foi enquanto estava sozinha a tocar que percebeu a aproximação de um pequeno barco. Nadou imediatamente até a superfície e, ao descobrir de água os olhos, viu que dentro do minúsculo barco havia um homem só. Sua pele era escura e os olhos, penetrantes. Seu corpo assumia uma forma magistral, com braços musculosos e tronco alongado. Em sua face, uma expressão cansada. Projetava uma pequena rede para fora, provavelmente a fim de capturar alguns peixes e afogar a necessidade de comer, mas não obtinha muito sucesso. Parecia completamente perdido, tão longe da costa, trajando apenas uma calça comprida feita de pano. Sayuri não ousaria hesitar; aproximaria do rapaz, se debruçaria sobre a casca de madeira, brincaria com suas madeixas ou cantaria por alguns segundos e tão logo aquele homem seria inteiramente seu, seu corpo e sua alma. Mas ela não conseguia, estava petrificada e sentia toda a frieza do seu coração de sereia indo embora, dando lugar a um calor irreconhecível. Parecia que sobre ela ele havia lançado seu encantamento de moço, mas não podia ser. Observou-o por uma hora, até que ele, entorpecido pelo cansaço, deitou-se e adormeceu. Logo Sayuri apoiou-se no pequeno barco e fitou o rosto do rapaz. Sentiu vontade de cantar para ele, não para devorá-lo, mas para deliciar ainda mais o sono no qual ele estava imerso. Assim ficou, até perder a noção do tempo, até o Sol se despedir e se pôr, impiedoso. E quando o rapaz abriu os olhos e a encarou, não sei dizer qual dos dois tomou o maior susto, apenas posso revelar que nenhum deles ousou se mexer. O homem, já tão fraco, pensou ter uma alucinação, pois não era possível que um ser tão bonito existisse num mundo daqueles. Esticou seus dedos, lentamente, com a respiração arfada, até tocar em uma pele úmida e mergulhou no choque, ao que Sayuri descolou os lábios e adocicou o mundo com seu canto. Venha, navegante, deixe-me em teu colo repousar/ Te prometo que esse mundo tão sórdido não vos vai afastar/ Que em tua pele colorida os meus lábios possa pôr/ Venha, meu anjo, em minha boca mergulhar/ Deixe-me, navegante, me inebriar com o teu amor.

E ao ouvir música assim bem cantada, o homem deixou de ser homem, deixou de ter fome, deixou de ter consciência para submeter-se as vontades da sereia que o seduzia. E Sayuri muito sofreu, pois no lugar dos olhos penetrantes, viu um reflexo de si mesma, e no lugar das feições de rapaz viu um rosto mascarado. Soltou-se do barco e mergulhou profundamente, nadou cheia de raiva e pensou que seu corpo estivesse queimando, tamanho calor a preenchia agora que se provara diferente das outras sereias. Não pensou em nada além do homem negro que lá em cima se encontrava; pegou a concha que usava para cobrir os seios e, com a ponta afiada, aranhou cruelmente a própria face, livrando de si mesma a beleza que a tornava exuberante. Viu na água o sangue que se soltava, sentiu o gosto da própria feiura e gritou praquele pedaço de mundo toda a sua liberdade. Tão logo quebrou os espelhos e os pentes e desmanchou as flores que usava para caprichar os penteados, subiu até a superfície pare encontrar o homem e voltou a aproximar-se dele. Fitou-o com intensidade, tirou do rosto os cabelos avermelhados e esperou que ele falasse. Não conseguiu desvendar a expressão do homem, não conseguiu se conter tamanha ansiedade, e disse “Chamo-me Sayuri”. Minutos depois, ele perguntou:“O que é isso no seu rosto?”. “São arranhões, que representam a minha liberdade”, ela respondeu. “E tu, o que és?”. “Era uma sereia, agora sou moça, humana feito você”. “Mas tu não és sereia, tampouco és humana… Pareces um monstro!”

E feita tal declaração, Sayuri encheu-se de todo o sentimento, que a dominou com força e audácia quase a fazendo chorar. Uma lágrima muito perto chegou de se formar nos olhos inchados da sereia! Mas antes que tal momento de fraqueza pudesse se fazer existir, ela pulou no barco, agarrou o rapaz com força esmagadora e o levou para as profundezas do mar…

Pois nunca um coração humano tivera gosto tão saboroso.


*_* estou com os olhinhos brilhando até agora, após ler esse conto perfeito e belissimo.

O Curupira


Gosto muito do Curupira e sempre procurei saber mais sobre. Encanta-me pensar que na floresta há quem proteja as árvores e seres que não conseguiriam se esquivar da ação predatória do homem.

Curupira (do tupi-guarani): “curu”: menino, e “pira”: corpo. Ou seja, corpo de menino.
Mas não é um corpo de menino qualquer não. Ouvi dizer que o mais comum deles tem mais ou menos um metro de altura, a pele escuuuuura e uma grande cabeleira voltada para trás, mostrando as orelhas do danado, que são compridas, pontiagudas e cheinhas de pêlos. O nariz é largo e chato, e nele um pequeno chifre espetado. Os olhos são rasgados e vermelhos e a noite ficam acesos feito lanternas, vagalumeando na densa escuridão da mata. A boca, quando arreganhada numa gargalhada assustadora, mostra os dentes branquiiinhos e pontiagudos. Todos parecem ser caninos e a língua é roxa, roxa. No mato, caminha de forma desengonçada, pois seus calcanhares são voltados para frente.

Dizem que apesar de pequeno, mete muito medo. Os poucos caboclos que viram a criatura ficaram horrorizados, não só pela aparência incomum, mas, principalmente, pela loucura que causa àqueles que entram na mata virgem, sem pedir licença, à procura de caça e outras riquezas naturais da fauna e flora, somente por ganância. Por isso é considerado o protetor da floresta, pois confunde o caminho do predador. O infeliz do caçador, perdido e desesperado, acaba enlouquecendo e, já não batendo bem da cachola, esquece o antigo propósito destruidor.

Uma carta do Padre Anchieta datada de 1560 dizia: "Aqui há certos demônios, a que os índios chamam Curupira, que os atacam muitas vezes no mato, dando-lhes açoites e ferindo-os bastante". Os índios, para lhes agradar, deixavam nas clareiras penas, esteiras e cobertores.

Sem mais explicações lá vai um causo pra vcs.

**********************
Havia um homem que era muito amigo de caçar. O maior prazer de sua vida era passar dias inteiros no mato, passarinhando, fazendo esperas, armando laços e arapucas. De uma feita, estava ele de tocaia no alto de uma árvore, quando viu aproximar-se uma vara de porcos-do-mato. Com a sua espingardinha derrubou uns quantos. No momento, porém, em que se preparava para descer, satisfeitíssimo com a caçada que acabava de fazer, ouviu ao longe os assobios do Curupira, dono, sem dúvida dos porcos que matara.
O nosso amigo encolheu-se todo em cima do jirau que armara lá na forquilha da árvore, para esperar a caça, e ficou quietinho, como toucinho no sal. Daí a pouco apareceu o Curupira. Era um molequinho, do qual só se via uma banda, preto como o capeta, peludo como um macaco, montado num porco magro, muito ossudo, empunhando um ferrão, gritando que nem um danado, numa voz muito fanhosa:

- Ecou ! Ecou ! Ecou!

Dando com os porcos mortos, estirados no chão começou a ferroá-los com força, dizendo:

- Levantem-se, levantem-se, preguiçosos! Estão dormindo?

Eles levantaram-se depressa e lá se foram embora, roncando. O último que ficou estendido, o maior de todos, custou mais a se levantar. O Curupira enfureceu-se. Ferreou-o com tanta sustância, que quebrou a ponta do ferrão. Foi então que o porco se levantou ligeiro e saiu desesperado pelo mato a fora, no rumo dos outros. Guinchou o Curupira:

Ah! Você esta fazendo manha também? Deixe estar que você me paga. Por sua causa tenho que ir amanhã à casa do ferreiro pra consertar o meu ferrão.
E lá se foi embora, com sua voz fanhosa esganiçada:

- Ecou ! Ecou ! Ecou !

Passado muito tempo, quando não se ouviam mais nem gritos nem os assobios do Curupira, o homem desceu depressa, correndo até em casa.
No outro dia, logo cedinho, botou-se para a tenda do ferreiro, o único que havia por aquelas redondezas. Conversa vai, conversa vem, quando, lá para um pedaço do dia, com o sol já bem alto, chegou à porta da tenda um caboclo baixote, entroncado de corpo, com o chapéu de couro de sábado sobre os olhos. Foi chegando, e dirigindo-se ao ferreiro:

- Bom dia, meu amo. Você me conserta aqui este ferrão? Estou com muita pressa...

- Ih caboclo, depressa é que não pode ser, pois não tem quem toque o fole. Estou aqui até o ponto dest'hora sem trabalhar por via disto mesmo!

Saltou mais que depressa o caçador, que maldara logo ser o caboclo o Curupira da véspera, o qual se desencantara para vir a casa do ferreiro, como prometera:

- Eu toco, seu mestre.

- E você sabe?

- Sempre arranjo um tiquinho. Tanto mais qu'isso não tem sabença.

O ferreiro acendeu a forja, mandando o caçador tocar o fole. O homem, então, pôs-se a tocá- lo devagar, dizendo compassadamente:

- Quem anda no mato
Vê muita coisa...

Depois de algum tempo, o caboclo avançou para ele, empurrou-o brutalmente para uma banda e disse:

- Sai daqui, que você não sabe tocar. Dá cá isso...

Começou a tocar o fole depressa, dizendo:

- Quem anda no mato,
Que vê muita coisa,
Também cala a boca,
Também cala a boca.

O caçador aí foi-se escafedendo devagarzinho, e abriu o chambre. Nunca mais atirou em porcos-do-mato, nem deu com a língua nos dentes a respeito do que vira.

*********************************