Muitos dos contos e fábulas que conhecemos hoje, tem uma origem mais
assustadora e maligna do que a maioria das pessoas imagina. Essas
estórias tinham, em sua maioria, o intuito de assustar as crianças para
que elas não fizessem determinadas coisas. Outras eram apenas relatos
fantasiados de verdades mais cruas. Séculos depois, estas estórias foram
reescritas de forma a tornarem-se mais inocentes e apresentáveis.
Essa
prática perdura em muitas das estórias posteriores e o resultado é que
estes contos - e aqui eu incluo os folclóricos mais recentes - perderam o
interesse para a maioria das pessoas. Passaram a ser vistos como algo
sem graça, herança desbotada dos mais velhos ou algo bobo para crianças.
Assim, são poucas as pessoas que irão apreciar estas coisas pelo seu
valor per se. E é por isso que eu tive essa pequena idéia de transformar
algo que, eu confesso, também achava bobo, em algo mais atraente,
revelando somente o potencial escondido em uma velha tradição.
Esse conto é dedicado ao meu amor, dona desse blog. Espero que gostem.
Pedra, árvore e gente
(G.F. Matos)
Um pescador chega em casa depois de passar a madrugada em alto-mar, provendo seu sustento.
Uma
fina linha de fumaça pode ser vista saindo da chaminé. O homem encontra
a casa aquecida e o café fresco, ainda quente. Sua filha dorme
enrodilhada em uma manta velha, aos pés do fogão. Ele recolhe a menina
em seus braços e a põe na cama. Sempre que ele chega do mar, ela está a
esperá-lo, ainda que, muitas vezes, adormecida. Ele senta junto à mesa e
saboreia o café, enquanto se distrai com a respiração leve da menina.
Os tempos são difíceis, o trabalho é escasso. Os resultados da pesca mal
conseguem suprir a subsistência. Os habitantes da cidade parecem não se
importar com isso, e sim com a vida alheia, com estórias rasas e
fantasias inúteis.
No dia seguinte, o homem se dá
conta que adormecera na cadeira enquanto pensava na vida e em suas
opções. O sol já ia alto e sua filha já havia iniciado as tarefas
domésticas. Ele se levantou e a abraçou, ternamente. Desde que sua
esposa morrera, a garota era sua única preocupação no mundo. Ele
sentia-se muito mal pela sua condição financeira e por não poder dar as
coisas que sua filha merecia - afinal, ela era sempre prestativa e o
apoiava em tudo. Por isso, havia alguns meses, o pescador guardava cada
centavo que lhe sobrava. E naquela semana, ele teria dinheiro suficiente
para comprar um presente para sua filha. Com sorte, antes de ter que
partir para a alto-mar novamente.
Foi numa sexta de
muito vento que ele voltou para casa arregando um pacote azul com um
grande laço de fita vermelha em cima. A menina ficou parada por alguns
segundos, olhos arregalados, sem reação. Então correu e abraçou o homem,
atentando-se ao pacote só depois que ele lhe afastou carinhosamente.
Desfêz o papel gentilmente, dobrando-o para que pudesse usar novamente,
secretamente pensando em como retribuir. E lá estavam eles, brilhantes e
azuis - um par de sapatinhos de vinil. Sem coragem para calçá-los, ela
passou a noite olhando para eles, como se possuíssem um quê de magia. Só
desviou sua atenção quando lembrou-se de algo que queria contar a seu
pai - uma estória que ouvira da vizinha. Mas o pescador estava cansado e
não queria ouvir estória alguma. Já bastava as pessoas medíocres da
vila e as vidas alheias que elas gostavam de acompanhar, mais do que a
delas próprias. Ademais, ele partiria novamente para alto-mar no dia
seguinte.
Dois dias depois, o homem retorna e encontra a casa quieta e fria. Nenhum sinal de sua filha.
Assustado
ele bate nas casas vizinhas em busca de alguma informação, mas tudo que
lhe dizem parece loucura, fruto de imaginações férteis, alimentadas por
anos de baboseira. O pescador se recusa a acreditar em uma palavra
sequer e retorna à casa, com receio que sua paciência se esgote e ele
acabe perdendo o controle. Indignado, ele espera por umas poucas horas e
depois, não mais suportando a demora, calça suas botas e parte. Rezando
para que esteja tudo bem, mas temendo pelo pior, ele vasculha a praia e
seus arredores à procura da menina. À luz do lampião, ele procura com
cuidado entre as rochas do costão, sem sucesso. As horas avançam e a lua
já se faz alta no céu, quando o homem desaba a chorar, já desesperado.
Sua única alternativa são as histórias sem sentido que seus vizinhos balbuciaram. Talvez elas
tivessem
algum fundo de verdade, que fizesse algum sentido. Ele não podia
acreditar que havia algo maligno escondido naquele morro. Essas coisas
não existiam na vida real, mas talvez a loucura daquele povo tivesse
transformado um perigo real em um perigo imaginário - o que só fazia a
raiva dele crescer. Talvez, se eles não tivessem distorcido a verdade,
sua filha tivesse levado a sério e tomado mais cuidado. Tomado de raiva,
o homem pegou um facão e reabasteceu o lampião com querosene. Ele
subiria o morro atrás de sua filha e do que quer que houvesse lá em
cima. Se nada encontrasse, no entanto, algumas pessoas iam ter que se
explicar de uma maneira ou de outra.
A lua vai alta
e as horas mortas já se aproximam, quando ele chega a uma clareira no
alto do monte. Uma sensação estranha se apossa do pescador, os pêlos da
nuca se eriçam, o estômago embrulha. Um cheiro irreconhecível, porém
angustiante, parece preencher o ar noturno. Por um momento ele fraqueja e
imagina se a criatura temida pela população é de fato um mito. Ele
engole em seco e balança a cabeça, tentando se livrar daqueles
pensamentos incoerentes. Enche os pulmões e se prepara para gritar o
nome de sua filha, mas pára em meio ao movimento, prendendo a
respiração. Um som estranho corta os ruídos noturnos - um som
chilreante, como água fervendo. Permanecendo imóvel e concentrado, o
homem consegue sentir uma pequena vibração no solo, como centenas de
pequenas pancadas distantes. Novamente ele tenta se convencer de que
existe uma explicação razoável para aquilo tudo, mas não consegue. Dizem
que a coisa come tudo, pedra, árvore e gente. Ele observa uma das
árvores ao redor da clareira e percebe marcas peculiares nos troncos,
nas pedras. Até a trilha que sai da floresta tem uma marca peculiar.
O pescador dá um passo atrás e faz menção de virar-se para ir embora,
mas algo lhe prende os olhos. Um vulto negro começa a deslizar, saindo
de uma das fendas da rocha. O silvo se torna mais alto, mais distinto,
assim como a vibração sob seus pés. Aquela criatura saída dos pesadelos
se enrodilha e desliza pela encosta - olhos vívidos e malignos refletem a
luz prateada do luar, centenas de pequenas patas castigam o chão em
uníssono. O pobre pescador nada pode fazer, paralizado de terror. Aquela
coisa parece não notar sua presença e vai se afastando, cascateando
morro abaixo, como uma serpente feita de sombras e medo. Quando o pobre
homem recobra suas capacidades, ele nota que as patas da criatura não
são uniformes: cada par parece diferente em tamanho e cor. Quando suas
pernas permitem, ele avança cautelosamente, a tempo de ver a cauda do
bicho livrar as rochas.
Ali, mais de perto, ele
pode ver melhor a coisa cujo apetite é insaciável. A serpente que tudo
come: pedra, árvore e gente. Abaixo dela, centenas de pares de pés -
descalços, de botas, de tênis de sapatos. Todos os miseráveis que
cruzaram seu caminho ali, condenados a carregar o causador do próprio
fim. O pescador sente a boca secar e até mesmo a sua raiva empalidece
ante a verdade serpenteante e negra. Suas pernas fraquejam e ele cai
quando o último par passa por ele - sapatinhos de vinil, azul e
brilhantes.
Os moradores da vila dizem que, naquela
noite ouviu-se um grito terrível vindo do morro. Apesar de ainda haver
muita discussão, a maioria das pessoas concorda que o que a voz dizia
era:
- BERNUNÇA!
E reza a
lenda que, depois daquilo, sempre que alguém avista a Bernunça e
sobrevive para contar, fala sobre um par de sapatinhos azuis, seguido
por botas de pescador.
Arreda, arreda,
Senão ela te come!
Arreda do caminho
Que a Bernúncia tá com fome!
A bernunça é personagem da estória do boi-de-mamão (boi-bumbá ou bumba meu boi).
Diz a cantiga:
TAVA DEITADO NA SOMBRA
QUANDO OUVI FALAR EM GUERRA
QUANDO ACABA ERA A BERNUNÇA
QUE VINHA DESCENDO A SERRA
A BERNUNÇA É UM BICHO BRABO
JÁ ENGOLIU MANÉ JOÃO
COME PÃO, COME BOLACHA
COME TUDO QUE LHE DÃO
(G.F. Matos)