O conto da sereia




Simplesmente o melhor e mais detalhado conto sobre sereias que já encontrei pela web.
Retirei do blog Verbalizada.


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Quem as águas do mar admirava, ainda que com muita atenção, mal conseguia ter ideia do que se preservava em suas profundezas. É que tão ciumento e protetor, o Oceano guardava pra si, em sua imensidão infinita, as sereias, e então o mundo quase pouco ou nada delas podia saber.

As sereias eram mulheres da cintura pra cima, exímias tamanha perfeição, com traços delicados em seus rostos, cabelos tão belos e sedosos quanto fios de seda, de lábios atraentes, olhos claros como a alma dos homens viajantes e narizes simétricos. Seus seios eram vastos e redondos como os das mulheres renascentistas, cobertos pelas conchas mais brilhantes numa tentativa pretensiosa de fingir o pudor. Seus perfumes instigavam, dentro de cada um que o sentia, toda a essência pura da tão nobre felicidade, e suas vozes, que eram sempre flagradas sussurrando tênues canções, eram também a doçura, a paz, a calmaria. No lugar de pernas e pés, uma longa cauda se mostrava cheiíssima de escamas frágeis e delicadas, e em seus pescoços uns poucos e invisíveis pelos existiam para arrepiar-se nas noites frias. Tão incríveis seres possuíam a capacidade de seduzir todos aqueles que pousassem os olhos sobre seu semblante ou que ouvissem, mesmo por poucos segundos, seu canto. Até o Oceano - grande rei do mundo, pai de milhões de vidas marinhas e guardião das caravanas e das expedições humanas -, até ele se rendia à inevitável perda de controle, de identidade e de vontade própria quando uma sereia desatava a própria voz ou penteava os longos cabelos. E definitivamente delas o mundo se tornava, quando à superfície uma ou duas subiam e sobre o Céu lançavam seu enlevo.



Pois todos a elas obedeciam, mesmo sem saberem. Se a água congelante se tornasse, as nuvens do Céu se dissipavam e o Sol aquecia os corpos das sereias. Se uma baleia fizesse menção de abocanhá-las, em poucos segundos se contorcia tamanha vergonha e morria de tanto desgosto. Se a chuva incomodasse, rapidamente parava de cair, e elas voltavam a se preocupar com outras regalias. E quando tinham fome, tão fácil era se saciarem! Pois os homens sempre adoravam aventurar-se nas águas dos mares em barcos que, por mais altos que fossem, nunca eram o suficiente para afastá-los das sereias. Eram tolos, fracos e as poucas histórias que alertavam sobre a existência das sereias e que podia guardá-los já haviam se tornado mitos há tanto tempo que ninguém se preocupava em lembrar. Pois os graciosos monstros sentiam quando na superfície se encontrava um barco e então nadavam até encontrá-lo. Observavam, discretamente, e lentamente se aproximavam. Quase nada se esforçavam; apenas começavam a cantar, nadavam caprichosamente e os olhavam de soslaio vez ou outra, pois isso era o suficiente. Completamente inebriados, os homens desciam do convés e se aproximavam dentro de barcos menores, alguns simplesmente pulavam na água e nadavam apressadamente, salivando de tão ansiosos. Quando se aproximavam, não temiam, mas mais encantados ficavam, pois a verdade é que nunca no mundo existiu ou vai existir algo tão bonito quanto às sereias, e os homens, escravos da beleza, caiam na armadilha num piscar de olhos. Pacientes, elas cantavam um pouco mais e apenas quando eles tentavam beijá-las nos lábios ou tocar-lhes a face, os abraçavam com força e os levavam para o fundo do mar, onde os pobres humanos sentiam os pulmões se enchendo de água e morriam, lenta e vaidosamente. Lá no fundo do oceano, as sereias desabotoavam suas camisas com os dedos esbeltos e provavam da sua carne, saboreando – ainda muito belamente - todos os corações sangrentos. Logo depois limpavam os beições e esperavam por um pouco mais.




A vida das sereias era vazia, mas não era tediosa. Elas tinham muito para fazer. Gostavam de praticar suas habilidades tocando instrumentos, de nadar por todos os lados livremente, de procurar por conchas para tampar os seios ou enfeitar os cabelos com pérolas. Divertiam-se criando arranjos com os corais, se misturando aos peixes, tomando banhos de sol na superfície, mas seu divertimento era seco, era frio. Nunca no mundo se ouvira a gargalhada de uma sereia, nunca ninguém pôde vê-las chorar.

Mas uma manhã de outono chegou, e o Céu se vestia num lindo tom de azul, e as águas do mar estavam serenas. Havia doze dias que nenhum homem aparecera e as sereias se separaram para procurar por cadáveres no mar. Não estavam famintas, imagine; as sereias só sentiam fome quando sem carne ficavam por meses. Mas não tinham nada melhor para fazer e queriam se entreter. Apenas Sayuri, uma das sereias mais jovens, decidiu não seguir as outras, pois um pouco de harpa almejava praticar, e foi enquanto estava sozinha a tocar que percebeu a aproximação de um pequeno barco. Nadou imediatamente até a superfície e, ao descobrir de água os olhos, viu que dentro do minúsculo barco havia um homem só. Sua pele era escura e os olhos, penetrantes. Seu corpo assumia uma forma magistral, com braços musculosos e tronco alongado. Em sua face, uma expressão cansada. Projetava uma pequena rede para fora, provavelmente a fim de capturar alguns peixes e afogar a necessidade de comer, mas não obtinha muito sucesso. Parecia completamente perdido, tão longe da costa, trajando apenas uma calça comprida feita de pano. Sayuri não ousaria hesitar; aproximaria do rapaz, se debruçaria sobre a casca de madeira, brincaria com suas madeixas ou cantaria por alguns segundos e tão logo aquele homem seria inteiramente seu, seu corpo e sua alma. Mas ela não conseguia, estava petrificada e sentia toda a frieza do seu coração de sereia indo embora, dando lugar a um calor irreconhecível. Parecia que sobre ela ele havia lançado seu encantamento de moço, mas não podia ser. Observou-o por uma hora, até que ele, entorpecido pelo cansaço, deitou-se e adormeceu. Logo Sayuri apoiou-se no pequeno barco e fitou o rosto do rapaz. Sentiu vontade de cantar para ele, não para devorá-lo, mas para deliciar ainda mais o sono no qual ele estava imerso. Assim ficou, até perder a noção do tempo, até o Sol se despedir e se pôr, impiedoso. E quando o rapaz abriu os olhos e a encarou, não sei dizer qual dos dois tomou o maior susto, apenas posso revelar que nenhum deles ousou se mexer. O homem, já tão fraco, pensou ter uma alucinação, pois não era possível que um ser tão bonito existisse num mundo daqueles. Esticou seus dedos, lentamente, com a respiração arfada, até tocar em uma pele úmida e mergulhou no choque, ao que Sayuri descolou os lábios e adocicou o mundo com seu canto. Venha, navegante, deixe-me em teu colo repousar/ Te prometo que esse mundo tão sórdido não vos vai afastar/ Que em tua pele colorida os meus lábios possa pôr/ Venha, meu anjo, em minha boca mergulhar/ Deixe-me, navegante, me inebriar com o teu amor.

E ao ouvir música assim bem cantada, o homem deixou de ser homem, deixou de ter fome, deixou de ter consciência para submeter-se as vontades da sereia que o seduzia. E Sayuri muito sofreu, pois no lugar dos olhos penetrantes, viu um reflexo de si mesma, e no lugar das feições de rapaz viu um rosto mascarado. Soltou-se do barco e mergulhou profundamente, nadou cheia de raiva e pensou que seu corpo estivesse queimando, tamanho calor a preenchia agora que se provara diferente das outras sereias. Não pensou em nada além do homem negro que lá em cima se encontrava; pegou a concha que usava para cobrir os seios e, com a ponta afiada, aranhou cruelmente a própria face, livrando de si mesma a beleza que a tornava exuberante. Viu na água o sangue que se soltava, sentiu o gosto da própria feiura e gritou praquele pedaço de mundo toda a sua liberdade. Tão logo quebrou os espelhos e os pentes e desmanchou as flores que usava para caprichar os penteados, subiu até a superfície pare encontrar o homem e voltou a aproximar-se dele. Fitou-o com intensidade, tirou do rosto os cabelos avermelhados e esperou que ele falasse. Não conseguiu desvendar a expressão do homem, não conseguiu se conter tamanha ansiedade, e disse “Chamo-me Sayuri”. Minutos depois, ele perguntou:“O que é isso no seu rosto?”. “São arranhões, que representam a minha liberdade”, ela respondeu. “E tu, o que és?”. “Era uma sereia, agora sou moça, humana feito você”. “Mas tu não és sereia, tampouco és humana… Pareces um monstro!”

E feita tal declaração, Sayuri encheu-se de todo o sentimento, que a dominou com força e audácia quase a fazendo chorar. Uma lágrima muito perto chegou de se formar nos olhos inchados da sereia! Mas antes que tal momento de fraqueza pudesse se fazer existir, ela pulou no barco, agarrou o rapaz com força esmagadora e o levou para as profundezas do mar…

Pois nunca um coração humano tivera gosto tão saboroso.


*_* estou com os olhinhos brilhando até agora, após ler esse conto perfeito e belissimo.

O Curupira


Gosto muito do Curupira e sempre procurei saber mais sobre. Encanta-me pensar que na floresta há quem proteja as árvores e seres que não conseguiriam se esquivar da ação predatória do homem.

Curupira (do tupi-guarani): “curu”: menino, e “pira”: corpo. Ou seja, corpo de menino.
Mas não é um corpo de menino qualquer não. Ouvi dizer que o mais comum deles tem mais ou menos um metro de altura, a pele escuuuuura e uma grande cabeleira voltada para trás, mostrando as orelhas do danado, que são compridas, pontiagudas e cheinhas de pêlos. O nariz é largo e chato, e nele um pequeno chifre espetado. Os olhos são rasgados e vermelhos e a noite ficam acesos feito lanternas, vagalumeando na densa escuridão da mata. A boca, quando arreganhada numa gargalhada assustadora, mostra os dentes branquiiinhos e pontiagudos. Todos parecem ser caninos e a língua é roxa, roxa. No mato, caminha de forma desengonçada, pois seus calcanhares são voltados para frente.

Dizem que apesar de pequeno, mete muito medo. Os poucos caboclos que viram a criatura ficaram horrorizados, não só pela aparência incomum, mas, principalmente, pela loucura que causa àqueles que entram na mata virgem, sem pedir licença, à procura de caça e outras riquezas naturais da fauna e flora, somente por ganância. Por isso é considerado o protetor da floresta, pois confunde o caminho do predador. O infeliz do caçador, perdido e desesperado, acaba enlouquecendo e, já não batendo bem da cachola, esquece o antigo propósito destruidor.

Uma carta do Padre Anchieta datada de 1560 dizia: "Aqui há certos demônios, a que os índios chamam Curupira, que os atacam muitas vezes no mato, dando-lhes açoites e ferindo-os bastante". Os índios, para lhes agradar, deixavam nas clareiras penas, esteiras e cobertores.

Sem mais explicações lá vai um causo pra vcs.

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Havia um homem que era muito amigo de caçar. O maior prazer de sua vida era passar dias inteiros no mato, passarinhando, fazendo esperas, armando laços e arapucas. De uma feita, estava ele de tocaia no alto de uma árvore, quando viu aproximar-se uma vara de porcos-do-mato. Com a sua espingardinha derrubou uns quantos. No momento, porém, em que se preparava para descer, satisfeitíssimo com a caçada que acabava de fazer, ouviu ao longe os assobios do Curupira, dono, sem dúvida dos porcos que matara.
O nosso amigo encolheu-se todo em cima do jirau que armara lá na forquilha da árvore, para esperar a caça, e ficou quietinho, como toucinho no sal. Daí a pouco apareceu o Curupira. Era um molequinho, do qual só se via uma banda, preto como o capeta, peludo como um macaco, montado num porco magro, muito ossudo, empunhando um ferrão, gritando que nem um danado, numa voz muito fanhosa:

- Ecou ! Ecou ! Ecou!

Dando com os porcos mortos, estirados no chão começou a ferroá-los com força, dizendo:

- Levantem-se, levantem-se, preguiçosos! Estão dormindo?

Eles levantaram-se depressa e lá se foram embora, roncando. O último que ficou estendido, o maior de todos, custou mais a se levantar. O Curupira enfureceu-se. Ferreou-o com tanta sustância, que quebrou a ponta do ferrão. Foi então que o porco se levantou ligeiro e saiu desesperado pelo mato a fora, no rumo dos outros. Guinchou o Curupira:

Ah! Você esta fazendo manha também? Deixe estar que você me paga. Por sua causa tenho que ir amanhã à casa do ferreiro pra consertar o meu ferrão.
E lá se foi embora, com sua voz fanhosa esganiçada:

- Ecou ! Ecou ! Ecou !

Passado muito tempo, quando não se ouviam mais nem gritos nem os assobios do Curupira, o homem desceu depressa, correndo até em casa.
No outro dia, logo cedinho, botou-se para a tenda do ferreiro, o único que havia por aquelas redondezas. Conversa vai, conversa vem, quando, lá para um pedaço do dia, com o sol já bem alto, chegou à porta da tenda um caboclo baixote, entroncado de corpo, com o chapéu de couro de sábado sobre os olhos. Foi chegando, e dirigindo-se ao ferreiro:

- Bom dia, meu amo. Você me conserta aqui este ferrão? Estou com muita pressa...

- Ih caboclo, depressa é que não pode ser, pois não tem quem toque o fole. Estou aqui até o ponto dest'hora sem trabalhar por via disto mesmo!

Saltou mais que depressa o caçador, que maldara logo ser o caboclo o Curupira da véspera, o qual se desencantara para vir a casa do ferreiro, como prometera:

- Eu toco, seu mestre.

- E você sabe?

- Sempre arranjo um tiquinho. Tanto mais qu'isso não tem sabença.

O ferreiro acendeu a forja, mandando o caçador tocar o fole. O homem, então, pôs-se a tocá- lo devagar, dizendo compassadamente:

- Quem anda no mato
Vê muita coisa...

Depois de algum tempo, o caboclo avançou para ele, empurrou-o brutalmente para uma banda e disse:

- Sai daqui, que você não sabe tocar. Dá cá isso...

Começou a tocar o fole depressa, dizendo:

- Quem anda no mato,
Que vê muita coisa,
Também cala a boca,
Também cala a boca.

O caçador aí foi-se escafedendo devagarzinho, e abriu o chambre. Nunca mais atirou em porcos-do-mato, nem deu com a língua nos dentes a respeito do que vira.

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Sol, Lua e Tália - Parte Final





O rei, depois de muito tempo, finalmente lembrou-se de Talia e quis novamente passar por aquelas bandas. Tinha imensa curiosidade em saber se a princesa encantadora ainda estava dormindo. Dizendo que ia à caça, ele viajou para o local, e foi muito feliz ao encontrá-la acordada e com duas encantadoras crianças pequenas. Disse a Talia quem era e o que tinha acontecido, e como ela chegou a ser mãe. Enquanto eles conversavam, os dois perceberam que estavam formando um forte laço de amizade e amor, e depois de alguns dias, quando chegou a hora para o jovem rei sair, ele prometeu voltar para ela em breve, e trazê-la a seu reino. Quando ele viajava de volta, descobriu como era realmente desesperado de paixão por Talia e seus dois filhos e, já em seu reino, mal conseguia dormir pensando neles e, quando finalmente adormecia, chamava insistentemente seus nomes em sonhos.

Agora, o jovem rei já tinha uma esposa, que achava suspeito quando ele não voltava por vários dias de caça. E passar as noites ao seu lado na cama e ouvi-lo chamar nomes estranhos em seu sono a tomava de raiva e ciúmes. Ela chamou o secretário do rei, e disse: "Estás entre a cruz e a espada. Vais trair seu rei, e me dizer quem é sua amante,  se fizeres isso te darei riquezas além de seus sonhos. Mas se você não me disser, sua vida não valera nada, pois terei de mata-lo." O secretário estava cheio de medo e pensava que deveria ser leal ao seu rei, mas com as insistentes ameaças da rainha acabou por valorizar sua própria vida acima da honra. Contou-lhe então o que o rei lhe havia dito em confiança. A rainha, uma vez ouvido o relato, enviou, pelo secretário a Talia, uma mensagem do suposto rei, dizendo: "Mande as crianças para mim agora, porque eu sinto falta delas e quero vê-las." Talia, muito feliz, pensou em como seu querido amava os filhos e obedeceu com alegria a convocação.



A rainha, odiando as crianças ainda mais quando viu o quão bonitas eram, arrastou-as para a cozinha e disse ao cozinheiro para matá-los, e prepará-los como pratos saborosos para a ceia do rei. O cozinheiro ficou horrorizado com a sugestão e, embora ele concordasse com ela, secretamente levou as crianças para sua esposa, e disse-lhe para escondê-las. Então eles mataram dois carneiros recém-nascidos, e os preparou de maneira deliciosa. Quando o rei sentou à mesa do jantar, a rainha disse, com grande prazer, que os pratos fossem servidos a seu amado marido, e enquanto ele comia com evidente prazer, a alegria não teve limites, e ela manteve-se a pressioná-lo para comer mais, dizendo: "Você está comendo o que é seu." Depois que ela disse isso várias vezes, o rei começou a ficar irritado e finalmente disse com raiva: "Eu sei muito bem que eu estou comendo o que é meu próprio, porque você nada trouxe com você de sua casa! " Levantou-se foi embora, permanecendo por vários dias em uma vila próxima, para superar a sua raiva.

Aproveitando a ausência do soberano daquelas terras, o secretário mais uma vez viajou até Talia com uma falsa mensagem, a mando da furiosa rainha. A mensagem dizia que seus braços ansiavam por ela e não podia mais suportar serem separados. Talia obedeceu com prazer, pois também sentia um grande desejo de estar com seu senhor, que era tão amável e gentil com ela, mas não imaginava o horror quando ela foi trazida para a rainha, cujo próprio rosto estava queimando de ódio.  A rainha disse-lhe: "Você é a puta que tem apreciado meu marido? Prepare-se para ser recebida no inferno, porque você logo estará indo para lá." Talia tentou argumentar com ela, dizendo como se tornou amante do rei enquanto ainda adormecida, mas a rainha apenas riu, desdenhou e ficou ainda mais furiosa. Ordenou então, no auge de sua cólera, que uma enorme fogueira fosse acesa no pátio do palácio, e que Talia fosse lançada a ela.
Talia ajoelhou-se para ganhar tempo, antes que a rainha mandasse joga- la no fogo, e como último pedido,  implorou que fosse autorizada a tirar suas roupas  antes que fosse lançada a fogueira. A rainha continuou sem piedade pela pobre Talia, mas notou que o vestido dela era muito bonito, e incrustado de joias, assim ela concordou que Talia podia despir-se, pensando em manter as roupas para ela depois. Talia começou lentamente a se despir e a cada peça removida, ela gritava, e lágrimas escorriam pelo seu lindo rosto ao pensar no horror que estava prestes a sofrer, e com cada peça, seus gritos eram mais altos e comoventes.
 O rei estava retornando ao palácio após sua ausência, e ouviu os gritos. Seguindo o som, ele se deparou com a rainha e o choro de Talia, que já estava quase nua. Ele exigiu uma explicação da rainha que, aos gritos, histérica, disse que havia descoberto sua traição, sua deslealdade. E acrescentou com ironia: “Mas não te preocupes querido, minha vingança já começou, visto que em sua ultima ceia em nossa casa, devorastes com tamanho prazer seus próprios bens, seus filhos tão queridos. E essa desgraçada estava prestes a arder na fogueira como uma prostituta”

Quando o rei ouviu, pálido e suando frio, o que havia acontecido, fora de si gritava: "Como eu poderia ter comido a minhas próprias doces crianças? Por que não reconheci? Você mulher, peçonhenta do mal! Como você poderia ter feito essa terrível coisa?" Dizendo isso, ordenou que a própria rainha fosse lançada ao fogo que ela havia preparado para Talia, e seu secretário com ela, por sua participação no enredo perverso. O último a ser jogado era o cozinheiro, a quem o rei tinha acreditado ter matado seus filhos. Quando o cozinheiro foi arrastado para fora, protestou gritando: "Não recompenses a minha fidelidade com este castigo terrível, estão a salvo seus filhos. Eles não estão mortos, eu os escondi com minha esposa. ”O rei, primeiro surpreso e depois alegre e aliviado, respondeu:” Se o que diz é verdade, você será recompensado como nenhum homem jamais fora". O cozinheiro então pediu que sua esposa trouxesse Sol e Lua ao rei, que os cobriu de beijos e carícias que nunca pareciam o suficiente para este pai aliviado e feliz.
Ao cozinheiro deu uma recompensa rica, e fez dele um cavalheiro. E, claro, casou-se com Talia, que viveu uma vida longa e feliz com seu marido e filhos, sempre sabendo muito bem que "A pessoa que é favorecida pela sorte tem sorte mesmo enquanto dorme".



*Na versão A bela adormecida de Perrault o nome da princesa era omitido e em 1888, quando Tchaikovsky compôs o balé de A Bela Adormecida, ele nomeou a princesa como Aurora, inspirado pelo nome de sua mãe.

Sol, Lua e Tália - Parte I

Para o desespero da leitora Myska, lá vai só a primeira parte da estória. Estória essa que deu origem ao conto A Bela Adormecida. Mas fica prometido que a segunda vem logo, tá? =)
Espero que apreciem!

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Certa vez havia um grande Senhor que foi abençoado com o nascimento de uma filha de enorme beleza, a quem ele chamou de Tália. Em homenagem a filha querida, organizou uma enorme festa e mandou chamar os homens mais sábios do reino para prever o que o destino tinha reservado para sua tão amada criança. Os sábios consultaram juntos a sorte e lançaram seu horóscopo, mas, para o horror do pobre pai, a profecia dizia que Tália seria posta em perigo caso tocasse um fio de linho sequer. O Senhor, muito assustado, decretou que nenhum linho ou cânhamo, ou qualquer coisa do tipo, poderiam mais ser trazidas para aquela casa, pensou que fazendo assim ele poderia proteger a filha de seu destino.

Um dia, quando Tália já havia se tornado uma bela jovem, estava olhando pela janela quando viu uma velha girando a roca. Era tão curioso aquilo que a senhora fazia, nunca tinha visto aquilo. Ficou tão encantada que chamou a velhinha para deixá-la vê-lo. A menina implorou tanto para esticar o linho que a senhorinha com pena deixou. Mas assim que o fez, uma farpa de linho fincou sob sua unha e ali mesmo ela caiu. A mulher assustada, ao ver a menina caída, correu para fora da casa e nunca mais voltou. Quando o pai ouviu falar sobre o infeliz evento, ficou arrasado e chorou tanto que de pranto se esvaziou. Em tamanha tristeza não teve coragem de colocar sua filha abaixo da terra tão fria, ao invés disso, com as roupas mais belas e bem feitas vestiu Tália e a colocou em cima de um estrado coberto de brocado em um dos quartos e, em seguida abandou a propriedade para sempre.

Depois de um longo tempo, um rei de terras distantes decidiu caçar por aquelas bandas. Distraído, procurando o que caçar, deixou seu falcão fugir. O animal voou em volta de uma grande casa e entrou pela janela. Como demorava muito para voltar o jovem soberano então enviou um servo para bater à porta da casa, com a intenção de pedir o retorno da ave. Não houve resposta. Bateram na porta mais uma vez, chamaram alto e nada de ninguém atender.  Como o pássaro não saia de jeito nenhum, o rei disse aos seus servos que ele mesmo iria escalar o muro e subir pela janela, a fim de recuperar o pássaro. Então ele subiu e vagou por parte da casa, mas não encontrou nada além de móveis empoeirados. Foi assim de sala em sala, de quarto a quarto, até que chegou a uma grande sala, onde encontrou uma menina encantadora, que parecia estar dormindo. Ele chamou por ela inumeras vezes, mas a bela não acordava. Entrou então na sala e olhou para ela de perto. Era tão incrivelmente linda que ele não podia deixar de desejá-la, e em seu íntimo começou a crescer uma luxúria quente. Foi assim, cheio da loucura da paixão, que a tomou em seus braços e a levou para cama, onde fez amor com ela. Depois de apagar a fúria de seu desejo, deixou a moça na cama, saiu de lá e voltou para seu reino, onde não pensou mais sobre o ocorrido.

Tália, que realmente apenas dormia inconsciente, tinha engravidado, e nove meses depois deu luz a dois lindos gêmeos. Amavelmente as fadas fizeram seu parto, e colocaram os bebês para mamar no peito da mãe. Assim o tempo foi passando e um dia, sem que as fadas vissem, uma das crianças, não sendo capaz de encontrar o seio, começou a mamar em seu dedo. Ele chupou com tanta força que tirou a farpa de lindo fincada sob sua unha e Tália acordou, como se de um longo sono. Quando ela viu os bebês, não sabia o que tinha acontecido ou como havia chegado ali, mas abraçou-os com amor, amamentou até que eles ficaram satisfeitos e os momeou Sol e Lua. Gentilmente as fadas continuaram a assisti-los, fornecendo-lhes alimentos e bebidas, que apareciam como se entregues por agentes invisíveis.


Os Cabelos de Dalva

Retirada da série Lendas da Nossa Gente, que reúne histórias da Grande Florianópolis.
Esse causo aconteceu em Praia Comprida, onde passei toda a minha infância e parte da minha adolescência.
Como é bom saber histórias sobre o local onde cresci.
Espero que apreciem tanto quanto eu apreciei! X)

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Dalva era uma linda jovem, Moradora da Praia comprida, em São José. Impressionava os homens com sua beleza. E tinha uma coisa que dava inveja a muitas mulheres. Pro terror dela, até as bruxas  se remoiam de inveja do dote: os longos e belos cabelos negros. À luz da lua, refletiam tons de azul de tão negros que eram. Ela passava pela rua, e todo mundo olhava pra trás para ver mais um pouquinho. No caminho ficava aquele rastro de perfume dos cabelos, nos homens ficava a cara de tolo de quem não entende tanta belezura.

Mas numa madrugada de lua cheia, se ouviu um gritedo na casa da bela Dalva. Toda a família acordou. Até os vizinhos acordaram e correram, de lampião na mão, pra casa da jovem, para saber o que era. Do quarto onde Dalva costumava dormir vinham berros e gargalhadas de mais de uma pessoa. A porta não abria, pela janela não se entrava. Quando o berreiro acabou, a mãe de Dalva foi a primeira a conseguir entrar na peça onde dormia a filha. Quando entrou, Dalva já estava sozinha, sentada na cama, em estado de choque, nem conseguia chorar, e com os cabelos transformados em um emaranhado só. Tinha nós em tudo que é fio de cabelo da cabeça de Dalva. Entre os nós, muitos pedaços de unhas compridas e sujas - mais pedaços do que uma pessoas poderia cortar das próprias mãos. Não tinha dúvida: era trabalho de mais de uma bruxa.
Vizinhos tentaram de tudo, passaram óleo, cremes, mas os nós tinham um jeito impossível de desatar.

Pura bruxaria feita por causa da inveja.

Não teve jeito, Dalva teve que raspar a cabeça. Quando voltou a crescer nunca mais foi o mesmo - nem tão preto, nem tão liso. Dalva já não chamava tanto a atenção dos homens nem das mulheres. As bruxas estavam satisfeitas com a tristeza de Dalva e nunca mais atacaram a jovem.

(Baseado na história contada por Gelci José Coelho, morador da Enseada de Brito, em Palhoça.)





A morte de Balder - Parte Final

Uma multidão alegre reuniu-se nos jardins repletos de pendões e flâmulas, em frente a Breidablik, o palácio de Balder. Sua esposa, Nanna, estava junto para divertir-se com o triunfo do marido, embora trouxesse na alma um vago receio, a despeito de tudo quanto lhe afirmara Balder, no sentido de que não haveria risco algum na brincadeira. Todos os deuses e guerreiros amigos haviam-se postado de um lado dos jardins, enquanto do outro, dentro de um pequeno círculo traçado na grama, estava Balder, com as mãos na cintura e um sorriso franco no rosto.

- Muito bem, amigos, podem começar a brincadeira! -  disse o deus, confiante.

Todos quiseram conceder a Odin o primeiro arremesso, mas este se recusou por medo que algo errado pudesse acontecer. Então Tyr, irmão de Balder e considerado o mais valente dos deuses, adiantou-se, empunhando a certeira lança com sua única mão (ele perdera a outra num episódio famoso, que o tornara merecedor do título). Mas, antesque pudesse arremessá-la, foi impedido pela advertência de Frigga, mãe de Balder:

- Não, espere! Lance antes algo mais inofensivo!

Tyr, atendendo o pedido, pegou uma simples pedra e a arremessou ao peilo deBalder. A pedra bateu e ricocheteou para o alto sem fazer-lhe o menor mal.

- Ótimo! Magnífico! - bradaram as vozes, sob um coro de aplausos.

Outros guerreiros adiantaram-se, confiantes também de não provocar desgraça alguma. Então, começou a cair uma verdadeira chuva de projéteis sobre o deus - lanças, espadas, machados, flechas e chuços de todos os tamanhos - que Balder recebia sem sofrer o mínimo arranhão. A algazarra era tremenda, quando Thor, o poderoso deus do trovão, adiantou-se e disse com um grito alegremente atrevido:

- Deixem comigo, agora!... Se Balder resistir a Miollnir, então, nada mais poderá derrubá-lo! - Ele se referia ao seu poderoso martelo, confeccionado por anões artífices. Um clarão abriu-se entre a fileira dos arremessadores e todas as respirações ficaram suspensas. Até mesmo o rude Odin não deixou de dirigir a Thor um olhar dúbio, onde errava um misto de apreensão e censura. Mas Thor confiava no que Frigga dissera e, por isto, seguiu adiante no seu intento.

- Prepare-se, Balder! Esta nem você agüenta!

Balder deu um largo sorriso e disse com a voz firme:

- Pode mandar!

Desta vez, entretanto, poucos tiveram o sangue-frio de achar graça na situação. Thor empunhou seu martelo e, após dar algumas voltas com ele no ar, arremessou-o na direção do irmão. Miollnir partiu assoviando e foi acertar direto na cabeça de Balder. Um "Oh!" de espanto varreu a platéia, quando todos viram o martelo ricochetear e voltar às mãos do deus do trovão sem causar dano algum a Balder.

Um coro alegre de risos continuou a encher o ar, abafando o canto dos pássaros, de modo que não havia naquele local quem não estivesse feliz. Mas, em vez de cumprimentar Loki pela feliz idéia do torneio, preferiam todos dirigir seus elogios a Balder, exaltando unicamente a sua coragem e o seu bom humor. "Coragem?”, indagava-se Loki, esquecido a um canto. "Como pode haver coragem verdadeira onde não há perigo real? Então, farto daquilo que chamou de bajulação vil, foi procurar algum incauto que pudesse lhe servir de braço para o golpe que pretendia vibrar ao fanfarrão de araque. 

Depois de percorrer com o olhar a multidão, Loki enxergou bem mais afastada a figura de Hoder, o irmão cego de Balder. Ele estava sentado embaixo de uma árvore, mordiscando um talo de erva. Apesar de afastado do bulício, ele também trazia no rosto um sorriso divertido, pois pela audição podia avaliar a grande alegria que reinava nos jardins de Breidablik.

- O que está fazendo aí sozinho? - disse-lhe Loki, aproximando-se sorrateiramente. - Por que não se junta aos outros?

- Bem, é o meu jeito de me divertir - disse o cego, com um meio-sorriso. -  Afinal, perto ou longe, a visão que tenho de tudo é sempre a mesma. Loki, que detestava sentir pena de alguém, procurou logo mudar o tom da conversa: - E o que acha do desafio? Não vai tentar alvejar Balder, também?

- Ora, eu!... - exclamou Hoder, irritando-se com a pergunta idiota. - O cego, afinal,sou eu ou você, que não vê a impossibilidade?

Loki deu um sorriso bem ao seu estilo: perverso. Depois, tomou de sua aljava, em meio a várias setas, uma feita do ramo do azevinho. (Depois de havê-lo limpado das bagas e das folhas, Loki havia conseguido torná-la uma verdadeira flecha, afiando-lhe cuidadosamente a ponta.) -  Aqui está uma seta, a mais certeira de todas, que você poderá perfeitamente atirar - disse Loki, persuasivamente. - Vamos, eu o ajudarei a fazer a pontaria. Hoder ergueu-se, dispondo-se aos poucos a se juntar aos demais e se alegrar um pouco também. Avançaram quase até o local, quando Loki deteve o Deus cego.

- Vamos ficar por aqui, um pouco afastados, para que você não corra risco de ser alvejado ou de alvejar alguém inadvertidamente.

Estando ambos meio que ocultos atrás de uma árvore, Loki armou o arco e ajustou-lhe a seta fatal.

- Pronto - disse ele, entregando a arma a Hoder e virando-o no sentido onde estava Balder. - Agora retese bem a corda!

Hoder fez o que Loki lhe dissera e ficou aguardando a ordem de disparo.

- Agora!... - disse Loki, quando viu que a seta tinha endereço certo no coração de Balder. A seta partiu sibilando e numa fração de segundos enterrou-se até a extremidade no peito de Balder. De repente a multidão percebeu que havia algo errado com o desafiante, pois embora os projéteis ainda estivessem a ser lançados, nenhum havia lhe provocado aquela reação que agora se desenhava em seu rosto. Os olhos arregalados e a mão pousada sobre o peito eram sinais suficientes de que algo terrível acontecera.

- Balder querido, o que houve? - exclamou Frigga, sua mãe, que num instante compreendera tudo.

Balder caiu de joelhos e antes que sua esposa Nanna pudesse aparar a sua queda, caiu de rosto na grama. Um jato negro de sangue escapou de sua boca, quando ela ergueu sua cabeça do solo. - Balder, não!... - exclamou ela, aterrada.

- Balder está morto! - gritou alguém no meio da multidão, e logo um coro de gritos aterrorizados tomou o lugar dos risos de alguns instantes atrás. Hoder, mesmo à distância, percebeu que algo de muito terrível acontecera - e que ele fora o responsável direto! Loki, entretanto, já não estava mais ao seu lado, tendo se retirado assim que vira, satisfeito, Balder tombar de rosto no chão.

- Balder assassinado! - bradavam agora as vozes.

Imediatamente a seta foi arrancada do peito do deus e Frigga, ao reconhecer o ramo de visco, sentiu um calafrio de horror e ódio penetrar-lhe com a mesma dor que seu filho haveria de ter sentido quando a seta lhe perfurara o coração.

- Foi uma armadilha, uma maldita armadilha! - bradou ela, arrancando os cabelos. - Não demorou muito para que se juntassem os fatos e se chegasse à conclusão de que o perverso Loki fora o autor do estratagema maligno. Hoder, o autor involuntário do homicídio, perdera os sentidos ao saber que fora o causador da morte do irmão. Quanto a Nanna, esposa do deus morto, sentira tanto a perda que acabara por desfalecer sem vida instantes depois da tragédia.

Não havia nada mais a fazer, sentenciou Odin, tão logo recuperara a razão, se não enterrar o filho e o mais amado dos deuses. Após os atos religiosos, Balder foi colocado em seu grande navio junto de sua esposa e, ali mesmo, foi acesa a sua pira funerária. Vários presentes foram depositados ao redor do morto e Odin colocou no braço de Balder o seu famoso bracelete de ouro Draupnir.

Entretanto, o barco ficara tão pesado que foi preciso pedir a ajuda da giganta Hyrrokin para empurrar o navio até o mar. Ela chegou montada em um grande lobo e, depois de conseguir acalmar a feroz montaria, empurrou o navio para dentro das águas com tanta força que as rodas que o conduziam arderam e um grande tremor de terra sacudiu os nove mundos. Thor, que vira nisto uma provocação ao seu poder de deus dos trovões e tremores de terra, irritou-se a tal ponto que quis partir em duas a giganta, sendo dissuadido pelos demais deuses. Mas da sua ira não escapou um infeliz anão chamado Lit, que inadvertidamente atravessara-se no caminho do Deus. - Saia da frente, anão maldito! - disse ele, dando um pontapé no desgraçado, que foi parar dentro do navio, que já ardia em pleno oceano.

E, este foi o fim de Balder, o mais adorado dos deuses. Loki, entretanto, bem como o infeliz Hoder, receberiam, em breve, a sua negra recompensa. Antes, porém, seria feita uma última tentativa para resgatar da terra dos mortos o filho dileto dos deuses, tarefa que esteve a cargo de Hermod, irmão também de Balder e uma espécie de Mercúrio nórdico - mas esta é uma outra história.



A morte de Balder - Parte I



Balder, filho de Odin e de Frigga, era o mais belo e amado dos deuses. Não havia criatura em todo o mundo, que não o adorasse. Grande parte do seu fascínio estava na alegria que ele irradiava sobre todos os que o cercavam; a própria natureza parecia alegrar-se com a sua chegada e, desta forma, era uma presença sempre bem-vinda onde quer que se fizesse anunciar.

Um dia, entretanto, Balder acordou com uma sombra anuviando o seu olhar. Sua mãe Frigga logo percebeu que algo muito grave o perturbava.

- Balder, querido - disse ela, achegando-se ao filho. - O que você tem, que acordou com um mau aspecto?

- Tive alguns pesadelos - respondeu o jovem deus, com o semblante alterado pela preocupação. - Estes sonhos ruins prognosticavam a minha morte!

Frigga levou logo a má notícia a seu esposo Odin.

- Deve ter sido só um pesadelo - disse o deus, minimizando o problema. -Vamos esperar para ver se ele se repete.

Infelizmente, nas noites seguintes, os mesmos sonhos funestos tornaram a atormentar Balder, de tal forma que Odin se viu obrigado a tomar uma providência.

- Vou até Niflheim, a terra de Hei, para ver se descubro o que esta acontecendo - disse ele a Frigga.

No mesmo dia desceu a toda pressa a Bifrost (a ponte do arco-íris que liga Asgard ao resto do mundo), cavalgando Sleipnir, o veloz cavalo de oito patas, rumando para as escuras e subterrâneas terras de Hel, a deusa da morte. Depois de ter cruzado com Garm, o cão que guarda o portão infernal, ficou frente a frente com a sinistra filha de Loki. Questionada por Odin, a Deusa lhe mostrou o caminho que levava até o túmulo de Angrboda, uma antiga profetisa. Ao chegar à escura região onde dormia a velha sibila, acordou-a com suas invocações.

- Acorde, profetisa! - disse o deus. - Quero saber por que há tantos preparativos em Niflheim, como se estivesse para ocorrer uma grande recepção.

 A profetisa, a princípio, relutou em dizer qualquer coisa, mas Odin, fazendo uso de seus feitiços rúnicos, obrigou-a a falar a verdade.

- O jovem deus... oh, sim, Balder!... entrará na morada de Hei... dentro de muito... muito pouco tempo...! - disse Angrboda, num estado muito próximo do sonambulismo.

- Balder morrerá mesmo? - disse Odin, sem poder acreditar.

- Morto... por Hoder... Sim, Hoder o matará...!

 Hoder era o irmão cego de Balder. Odin, sem querer escutar mais coisa alguma, deu as costas à profetisa e, montado em Sleipnir, retornou à toda pressa para Asgard. Tão logo chegou à morada dos deuses, procurou por sua esposa e lhe contou sobre a má notícia. Porém, preferiu esconder a segunda parte da revelação por achar que a fatalidade ainda poderia ser evitada.

- Não, não! - exclamou a mãe de Balder, recusando-se a aceitar o destino que as Nornas, as fiandeiras do destino, pareciam haver decretado, irrevogavelmente, para o seu filho.

Decidiu, então, tomar as suas providências para impedir que isto acontecesse. No mesmo dia partiu pelo mundo para alcançar de todas as coisas que o compunham a promessa de que jamais fariam mal a Balder. Este foi um longo périplo, que o amor de mãe a fez cumprir com impressionante rapidez e sucesso. Todos os deuses, homens, anões, elfos, duendes - e até os gigantes, inimigos declarados dos deuses prometeram à Deusa que jamais fariam qualquer mal a Balder. Mas isto não foi tudo: até dos seres inferiores da criação - como os animais, os insetos, as plantas e os minerais - Frigga arrancou a promessa de que jamais atentariam contra a vida de seu amado filho. Leão por leão, escorpião por escorpião, folha por folha, pedra por pedra - de um por um destes seres ela obteve, de maneira suavemente persuasiva, a promessa desejada.

Então, quando havia cumprido finalmente a tarefa, Frigga voltou para junto do seu esposo, feliz e aliviada.

- Balder está protegido! -disse ela a Odin, com um sorriso radiante. - Ninguém jamais atentará contra a vida de nosso filho!

Quando a notícia chegou aos ouvidos da corte asgardiana foi grande o júbilo que se ergueu entre os deuses.

- Balder não morrerá! Balder é imortal! - exclamavam as vozes,exultantes.

E, apesar do grande privilégio que isto representava, não se ouviu uma única voz de inveja erguer-se, pois ele era uma criatura amada por todos. No entanto, havia uma voz que estaria disposta a proclamar a sua inveja, não fosse o receio de alguma punição. Esta voz pertencia a Loki, um Deus que não primava exatamente pela virtude ou pela generosidade.

- Então, Balder, o queridinho dos deuses, agora está protegido? - pensou Loki, ao tomar conhecimento do fato. Estava estarrecido com o feito de sua popularidade. - Então, não houve em toda a natureza um único ser que se recusou a aceitar esta imposição arbitrária de jamais atentar contra a vida de Balder? Não, isto não pode ser assim! - exclamou ele, irado. Pensava nisto noite após noite. E, desta forma, passou a ser ele a apresentar um mau aspecto todas as manhãs, quando acordava de seu sono perturbado pela inveja.

- O que tem você, Loki, que anda com esta horrível cara de insone? - disse-lhe, um dia, Balder. Isto foi a gota d'água para que o perverso Deus decidisse tomar uma atitude contra o filho de Odin.

- Deve haver alguma criatura, algum ser, qualquer coisa, que tenha se recusado ao juramento infame! - disse o Deus ao sair para sua maldosa peregrinação. Depois de percorrer boa parte do mundo, Loki sentou-se exausto sobre um grande rochedo para pensar sobre a melhor estratégia a ser adotada. Após muito matutar - pois o perverso Deus tinha ao menos a virtude de saber usar a cabeça (ainda que para maus propósitos) -, decidiu procurar Frigga, mãe de sua vítima, para descobrir, dela própria, se não havia um meio de burlar aquela "conspiração idiota" a favor de Balder. Para tanto, metamorfoseou-se em uma velha e foi até o palácio de Frigga. Lá, encontrou a mãe de Balder a fiar e começou, então, a elogiar o grande prodígio que ela obrara ao obter de toda a natureza uma promessa tão sublime para o seu filho.

- Verdadeiramente espantosa a popularidade de Balder! - disse a velha, fingindo-se feliz com o fato. - Depois, assumindo um ar de curiosidade intensa, perguntou à deusa: - Mas, diga-me, poderosa Frigga: é verdade que todos, absolutamente todos, comprometeram-se a jamais lhe fazer mal?

Frigga, a princípio, afirmou categoricamente que todos assim haviam feito. Mas, diante da insistência da velha, acabou por vacilar por um pequeno instante e isto foi o bastante para incitar a dúvida de Loki.

- Por que vacilou, minha amiga? - disse a velha, com os olhos a brilhar.

- Bem, vou falar um segredo a senhora, já que estamos inteiramente a sós.

- Sim, claro, diga! - falou a velha. - Nada escapará de minha boca!

- Houve, sim, uma pequena e inofensiva criatura à qual não tive a coragem de exigir a promessa, tal a sua fragilidade e doçura!

- Oh, que bela alma! - disse Loki, fingindo-se encantado com a delicadeza de Frigga. - E, que criatura foi esta, encantadora Deusa?

- Um ramo de azevinho - disse a Deusa, bem baixinho.

- Oh, o frágil visco...! - disse a velha, dando um grande sorriso gengival.

- Sabe, achei que seria uma terrível ofensa - e mesmo uma ingratidão criminosa! - imaginar que esta bela plantinha, que costumamos colocar do lado de fora de nossas casas em sinal de hospitalidade, pudesse de alguma forma desejar fazer mal a meu filho. Dispensei, então, a planta da paz deste juramento solene. Acha que fiz bem em prestar-lhe esta homenagem?


- Oh, sem dúvida, magnânima deusa! - disse a velha, abraçando-se à Frigga. - Fez bem, oh!, fez muito bem mesmo.

Loki despediu-se da Deusa e seguiu seu caminho, com a idéia de realizar um concurso em honra ao Deus tão amado: Arremesso ao Balder , foi como batizou o torneio que afirmava inofensivo.

- O deuzinho exibicionista não se furtará a posar de valente!" - pensou Loki, com um sorriso perverso desenhado nos lábios, ao engendrar mais esta perversidade.

A Arte de Resolver Conflitos




Ainda sou fraca, mas estou aprendendo.
Ótima história que me fez refletir muito sobre algumas situações em minha vida.
Espero que apreciem e reflitam.


"Violência gera violência, os fracos julgam e condenam, porém os fortes perdoam e compreendem."
Augusto Cury

O trem atravessava sacolejando os subúrbios de Tóquio numa modorrenta tarde de primavera. Um dos vagões estava quase vazio: apenas algumas mulheres e idosos e um jovem lutador de Aikidô.
O jovem olhava, distraído, pela janela, a monotonia das casas sempre iguais e dos arbustos cobertos de poeira. Chegando a uma estação as portas se abriram e, de repente, a quietude foi rompida por um homem que entrou cambaleando, gritando com violência palavras sem nexo. Era um homem forte, com roupas de operário. Estava bêbado e imundo. Aos berros, empurrou uma mulher que carregava um bebê ao colo e ela caiu sobre uma poltrona vazia. Felizmente nada aconteceu ao bebê. O operário furioso agarrou a haste de metal no meio do vagão e tentou arrancá-la. Dava para ver que uma das suas mãos estava ferida e sangrava.

O trem seguiu em frente, com os passageiros paralisados de medo e o jovem se levantou. O lutador de Aikidô estava em excelente forma física. Treinava oito horas todos os dias, há quase três anos. Gostava de lutar e se considerava bom de briga. O problema é que suas habilidades marciais nunca haviam sido testadas em um combate de verdade. Os alunos são proibidos de lutar, pois sabem que Aikidô é a arte da reconciliação. Aquele cuja mente deseja brigar perdeu o elo com o Universo. Por isso o jovem sempre evitava envolver-se em brigas, mas no fundo do coração, porém, desejava uma oportunidade legítima em que pudesse salvar os inocentes, destruindo os culpados. Chegou o dia! Pensou consigo mesmo. Há pessoas correndo perigo e se eu não fizer alguma coisa é bem possível que elas acabem se ferindo. O jovem se levantou e o bêbado percebeu a chance de canalizar sua ira.

- Ah! Um valentão! Você está precisando de uma lição de boas maneiras!

O jovem lançou-lhe um olhar de desprezo. Pretendia acabar com a sua raça, mas precisava esperar que ele o agredisse primeiro, por isso o provocou de forma insolente. 

- Agora chega! Você vai levar uma lição. 

Gritou o bêbado se preparando para atacar. Mas, antes que ele pudesse se mexer, alguém deu um grito: 

- Hei!

O jovem e o bêbado olharam para um velhinho japonês que estava sentado em um dos bancos. Aquele minúsculo senhor vestia um quimono impecável e devia ter mais de setenta anos. Não deu a menor atenção ao jovem, mas sorriu com alegria para o operário, como se tivesse um importante segredo para lhe contar.

- Venha aqui. 

Disse o velhinho, num tom coloquial e amistoso. 

- Venha conversar comigo.
Insistiu, chamando-o com um aceno de mão. O homenzarrão obedeceu, mas perguntou com aspereza: 

- Por que diabos vou conversar com você?

O velhinho continuou sorrindo. 

- O que você andou bebendo? 

Perguntou, com olhar interessado.

- Saquê. 

Rosnou de volta o operário. 

- E não é da sua conta!

Com muita ternura, o velhinho começou a falar da sua vida, do afeto que sentia pela esposa, das noites que sentavam num velho banco de madeira, no jardim, um ao lado do outro.

- Ficamos olhando o pôr-do-sol e vendo como vai indo o nosso caquizeiro. 

Comentou o velho mestre.
Pouco a pouco o operário foi relaxando e disse: 

- É, é bom. Eu também gosto de caqui...

- São deliciosos. 
Concordou o velho, sorrindo. 

- E tenho certeza de que você também tem uma ótima esposa.

- Não. Minha esposa morreu.

Falou o operário e, suavemente, acompanhando o balanço do trem, começou a chorar.

- Eu não tenho esposa, não tenho casa, não tenho emprego. Eu só tenho vergonha de mim mesmo.

Lágrimas escorriam pelo seu rosto. E o jovem estava lá, com toda sua inocência juvenil, com toda a sua vontade de tornar o mundo melhor para se viver, sentindo-se, de repente, o pior dos homens. 
O trem chegou à estação e o jovem desceu. Voltou-se para dar uma última olhada. O operário escarrapachara-se no banco e deitara a cabeça no colo do velhinho, que afagava com ternura seus cabelos emaranhados e sebosos.

Enquanto o trem se afastava, ainda envergonhado, o jovem ficou meditando. 

- O que eu pretendia resolver pela força foi alcançado com algumas palavras meigas. 

E aprendeu, através de uma lição viva, a arte de resolver conflitos.

O Estratagema de Ísis

 (ou "Ísis a fodona" como gosto de pensar XP)






O tempo é imparcial, inexorável, devora sem escolha e sua fome é insaciável. Os deuses, inquietos, percebiam que nem mesmo o grande Deus egípcio do sol era imune a ele. Seu estado piorava com o passar do tempo: sua capacidade de julgamento estava, a cada dia, mais nublada. Seus membros iam ficando rígidos; pouco a pouco, seus ossos se convertiam em prata e seu corpo em ouro. Mas, mesmo com o tempo a lhe devorar aos poucos, ele ainda era muito poderoso e sábio, e quase tão sábia quanto ele era sua neta, Ísis, a Deusa da magia, da cura, do amor e do trono. O único conhecimento que faltava a Deusa, era justamente aquele que lhe daria os imensos poderes de uma Deusa de primeira grandeza: O verdadeiro nome do Deus Sol.

Todos os dias, com grande dificuldade, o Deus solar caminhava com sua comitiva ao longo da mesma estrada até seu barco solar, que o levava na jornada da terra dos vivos no Oriente até a terra dos mortos no Ocidente. Um dia, numa dessas idas ao barco solar, ele foi acometido por uma forte tosse e, antes de seguir caminho, cuspiu no chão para se livrar do pigarro indesejado. Escondida ali perto, atrás de um espesso arbusto, se encontrava Ísis que, vendo seu avô já ao longe, saiu do esconderijo e correu até onde ele havia cuspido. Com seus conhecimentos em magia, misturou a saliva com a terra entre seus dedos, e dessa lama amassada formou uma serpente. No dia seguinte, quando o Deus novamente saiu para percorrer o firmamento com sua barca, Ísis, escondida, soprou vida à serpente e a soltou em seu caminho. A víbora, mais do que rápido, mordeu o pé do velho Deus que sentiu uma dor aguda e gritou:

- Que é isso?! Que me aconteceu?

Uma fraqueza extraordinária desceu sobre ele; seus dentes batiam com violência, seus braços e pernas tremiam. O veneno se espalhava rapidamente e ele deixou-se cair ao chão, convulsionado pelos espasmos de dor que lhe sacudiam o corpo. Aterrorizado, o grande deus Sol conseguiu reunir um pouco de força e disse:

- Vinde para perto, todos vós que nascestes de mim.

Ao seu redor, vindos de todas as partes do universo, foram se reunindo os deuses chamados por sua vóz divina, e claro, lá também estava Ísis. Ao ouvir todos seus filhos e netos a lhe prantear, o Deus disse:

- O coração me queima e o corpo me treme. Sinto-me mais frio que a água e mais quente que o fogo. Meus olhos estão vidrados e eu não consigo ver o Céu. Embora nada tenha visto e minhas mãos nada tenham alcançado, sei, em meu coração, que fui ferido por coisa mortífera.

Foi a então que Ísis se destacou do círculo formado em torno do Deus moribundo e falou:

- Alguma das criaturas que criastes levantou a cabeça contra ti, pai? Certamente foi uma serpente, divino sol, que com seu poderoso veneno causou o mal que atormenta teu corpo. Tenho certeza que com o encantamento correto posso livrar-te deste mal. Mas terás de dizer a mim teu nome.

O velho Deus está a ponto de desmaiar e se retorce no chão. Embora não queira revelar o segredo, precisa dar uma resposta a Ísis. Desesperado, limita-se a enumerar os diversos nomes que todos conhecem.

- Sou Quéfri de manhã, Rá ao meio-dia e Aton ao entardecer. Muitos são meus nomes. Eu sou o Deus do não ser. Somente meu pai me chama pelo meu verdadeiro nome. Ele me deu esse nome para que niguém pudesse me enfeitiçar com magias e assim se apoderasse de minha eterna sabedoria.

Ísis, muito esperta, não se deixa enganar e insiste:

- Dize a verdade, e minha magia pode livrar-te para sempre dessa dor. Qual é esse verdadeito nome, então, aquele que seu pai te deu?

De maneira alguma ele dizia seu verdadeito nome. E cada vez mais seus gritos ecoavam entre os mundos. No entanto, nenhum Deus intervinha e Ísis insistiu uma vez mais:

- Diga-me pai, qual seu verdadeito nome, e eu te ajudarei com minhas palavras mágicas. Meu encantamento só será eficaz se me revelares teu verdadeiro nome. Com um feitico lançado com teu nome secreto, poderei para sempre retirar o veneno do teu corpo.

O Deus ainda hesitou e resistiu o quanto pode, mas desde que não parecia haver descréscimo  na fúria da dor, cedeu:

- Vem cá! Vou derramar em teu coração o poder que está no meu.

Ísis aproxima-se dele, que a contragosto, sussurra em seu ouvido:

- Meu nome secreto é Rá. Este é o nome dado a mim por meu pai.

Fortalecida pelo segredo, Ísis pronuncia as únicas palavras mágicas capazes de quebrar o encantamento. Imediatamente, Rá recupera a saúde. O grande Deus Rá fica muito aborrecido por ter sido obrigado a entregar a essência de seu poder, mas Ísis está feliz: acaba de transformar-se numa das maiores divindades, senão, a mais poderosa de todas.

The Lady of Shalott





Lua cheia no céu, chá de hortelã e cidreira fumegante na xícara velha, cigarro no cinzeiro e viajando nas lembranças do mar e de contos conhecidos, me deparei com o poema sobre a Senhora de Shalott. A curiosidade pelo conto me foi apresentada por minha mãe, quando trouxe para casa o primeiro Cd de Loreena Mckennitt que eu iria ouvir.

Bem, deixo vocês com o poema e, para aqueles que preferem ler em forma de conto, deixo aqui o endereço onde a estória é hospedada.
Espero que apreciem. Boa leitura!

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A Senhora de Shalott.

E ao luar, o ceifador cansado,
Empilhando feixes em terras altas arejadas,
Presta atenção e sussurra
"Esta é a fada Senhora de Shalott".

Salgueiros embranquecem, álamos estremecem,
Pequenas brisas escurecem e arrepiam
Através das ondas que correm para sempre
Próximas à ilha no rio
Desaguando em Camelot.

Quatro muros cinzentos, e quatro torres cinzentas,
Dão vista para um espaço de flores,
E a ilha silenciosa abriga
A Senhora de Shalott.

Seu cenho amplo e largo ao sol brilhava;
Sobre cascos lustrosos seu cavalo de guerra avançava;
Por baixo de seu capacete escapavam
Seus cachos pretos como carvão enquanto cavalgava,
Enquanto cavalgava na direção de Camelot.

À distância de uma flechada dos aposentos dela,
Ele cavalgava por entre os feixes de cevada,
O sol aparecia ofuscante por entre as folhas,
E ardia por sobre as armaduras de bronze
Do ousado Sir Lancelot.

Tudo naquele clima azul e sem nuvens
O couro da sela brilhava como se fosse incrustado,
O capacete e a pena do capacete
Ardendo como uma única chama que queima junta,
Enquanto ele cavalgava na direção de Camelot.

Ela deixou a teia, deixou o tear,
Deu três passos através do quarto,
Viu o lírio d'água florescer,
Viu o capacete e a pena,
Olhou ao longe para Camelot.

Lá ela tece noite e dia
Uma teia mágica com cores alegres.
Ela ouviu um sussurro dizer,
Uma maldição recairá sobre ela se continuar
A olhar ao longe para Camelot.

Ela não sabe que maldição pode ser,
E assim ela tece continuamente,
E poucas outras preocupações ela tem,
A Senhora de Shalott.

Como sempre acontece na noite púrpura,
Sob os aglomerados de estrelas brilhantes,
Algum meteoro barbado, com um rastro de luz,
Movimenta-se acima da pacata Shalott.

Mas ela ainda regozija em sua teia
Tecendo as visões mágicas do espelho,
Porque com freqüência em noites silenciosas
Um enterro, com plumas e luzes,
E música, ia até Camelot:

E às vezes pelo espelho azul
Os cavaleiros vêm cavalgando dois a dois:
Ela não tem nenhum cavaleiro real e verdadeiro,
A Senhora de Shalott.

Ali o rio faz um redemoinho,
E ali os aldeões mal-humorados,
E as capas vermelhas das moças da feira,
Passam vindos de Shalott.

E movendo-se por um espelho claro
Que pende diante dela todo o ano,
Sombras do mundo aparecem.
Ali ela vê a estrada mais próxima
Serpenteando até Camelot:

Ou quando a Lua ia alta no céu,
Vinham dois jovens amantes recém-casados;
"Estou meio cansada de sombras", disse
A Senhora de Shalott.

Um cavaleiro de cruz-vermelha eternamente ajoelhado
Para uma senhora em seu escudo,
Que brilhava no campo amarelo,
Além da remota Shalott.

A teia voou para fora e saiu flutuando;
O espelho rachou-se de lado a lado;
"A maldição recaiu sobre mim!", exclamou
A Senhora de Shalott.

E pela extensão obscura do rio...
Como um vidente ousado em transe,
Ao enxergar todo o seu desfortúnio...
Com semblante vidrado
Foi que ela olhou para Camelot.

Ela desceu e encontrou um bote
Flutuando largado sob um salgueiro,
E por toda a extensão da proa ela escreveu
A Senhora de Shalott.

E ao encerrar-se o dia
Ela soltou a corrente e deitou-se;
O largo rio carregou-a para longe.
A Senhora de Shalott.

Lá deitada, vestida de branco neve
Esvoaçando solta para lá e para cá...
As folhas sobre ela caindo com leveza...
Através dos ruídos da noite,
Ela foi flutuando até Camelot:

Ouvindo um hino, pesaroso, sagrado,
Cantando alto, cantando baixo,
Até que seu sangue foi se congelando lentamente,
E seus olhos se escureceram por completo,
Voltados para Camelot que se avultava.

Porque antes de alcançar com a maré
A primeira casa à margem do rio,
Cantando sua canção ela morreu,
A Senhora de Shalott.

Lutando em meio ao tempestuoso vento leste,
O bosque amaralo-pálido ia minguando,
O largo rio em suas margens reclamava.
As nuvens baixas no céu choviam pesado
Sobre Camelot que se avultava.

Sob torres e sacadas,
Passando pelos muros dos jardins e pelas galerias,
Como um vulto cintilante ela foi flutuando,
Com palidez mortal entre as casas altas,
Silenciosa, penetrando em Camelot.

E enquanto a proa do bote ia avançando
Entre as colinas de salgueiros e os campos,
Ouviram-na cantar sua última canção
A Senhora de Shalott.

Para o cais todos foram,
Cavaleiro e burguês, lorde e dama,
E por toda a extensão da proa eles leram seu nome,
A Senhora de Shalott.

Quem é esta? e o que está aqui?
E o palácio iluminado próximo
Morreu o som da alegria real;
E fizeram o sinal-da-cruz por medo,
Todos os Cavaleiros de Camelot:

Mas Lancelot refletiu por um instante,
Ele disse: "Ela tem um rosto adorável;
Deus em sua misericórdia cedeu-lhe graça,
A Senhora de Shalott."

•••••••••••••••••••••••••••••••

Longo porém belo como só um poema poderia ser.